Análise de Gianfranco Ravasi, cardeal e presidente do Pontifício Conselho da Cultura.
Panikkar e Eckhart (Foto: )
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Panikkar
e Eckhart: dois retratos de homens de fronteira, um deles que morreu em
agosto do ano passado na Espanha; o outro, remoto, porém
provocativamente inquietante ainda hoje.
Eis o artigo. O
fato de habitar em territórios de fronteira não protegidos por cortinas
de ferro inevitavelmente comporta intrusões. E isso não vale só para a
topografia, mas também para a teologia. Se quisermos colocar de outra
forma, podemos dizer que o uso apaixonado e reiterado do "para-doxo"
leva às vezes ao "hetero-doxo", sem que, no entanto, o pêndulo não possa
retornar ao ponto de partida. Gostaria de propor agora, de modo
muito
simplificado, dois retratos de homens de fronteira, um deles perto de
nós, tanto que morreu em agosto do ano passado na Espanha; o outro,
remoto (porém provocativamente inquietante ainda hoje), contemporâneo de
Dante, tanto que suas datas extremas são próximas às do grande poeta
(1260-1327 aproximadamente). Partamos, portanto, do nosso
contemporâneo, "mestiço" já na sua gênese biológica, sendo filho de mãe
catalã e de pai indiano, mas por toda a vida cultivador de uma
"mestiçagem" cultura e religiosa de equilíbrios delicadíssimos. Estou
falando de um pensador muito original, Raimon Panikkar, do qual a
editora Jaca Book iniciou há tempos a imensa coleção da sua Opera
omnia. Ele confessava, de fato: "Não vivi para escrever, mas
escrevi para viver de modo mais consciente e para ajudar os meus irmãos
com pensamentos que não surgem da minha mente, mas brotam de uma Fonte
que pode se chamar de Espírito". Ele
conduziu a sua existência e a sua busca ao longo de uma verdadeira
encruzilhada de fronteiras espirituais: a católica, a hinduísta, a
budista e a secular, construindo pontes, escavando túneis, abrindo
estradas, alinhando-se em caminhos altos onde se pode contemplar todos
os panoramas, mas também avançando em vales de limites incertos. O
próprio desenrolar do seu pensamento era uma insone oscilação entre
gêneros diversos: da especulação ao símbolo, da análise à poética, da
documentação à intuição, da filosofia à mística. Análogo era o desdobrar
do seu arco-íris temático, que se sustentava sobre um eixo cristológico
que, no entanto, se ramificava ao longo de todas as direções e das
múltiplas cores das religiões fundamentais, a cristã, a hebreia, a hindu
e a cósmica. Era árduo tê-lo como companheiro de viagem teológica:
também me aconteceu – que o conheci, e ele sempre me considerou com
afeto – de me
encontrar perdido diante da sequência acelerada e febril das suas
paisagens teológicas. Inesquecível para mim foi um diálogo
público com ele sobre um livro tão "fluido" como o de Jó (São Jerônimo o
comparava a uma enguia ou a uma moreia!) no Duomo de Milão, diante de
uma imensa multidão fascinada e transtornada ao mesmo tempo. É
por isso que, se quisermos desenhar um retrato de Panikkar, o caminho
mais pertinente é o adotado por um jornalista de grande fineza humana,
espiritual e intelectual, Raffaele Luise, que optou pelo gênero
narrativo com dois protagonistas essenciais, o mestre e o discípulo. A
incandescência do pensamento de Raimon, de fato, dificilmente podia ser
coagulado no molde frio da crítica teológica, porque o transbordaria
constantemente. O divino, o humano e o cósmico não tinham nele
protocolos codificados e rígidos. As fronteiras eram justamente
dissolvidas por uma hermenêutica que tendia
a entrecruzar não só as religiões entre si, mas também as culturas e as
espiritualidades, em uma cristologia total, mas não atribuível à
coerência de um sistema. Com Luise emerge assim o homem
Panikkar, crente apaixonado, amigo doce, mestre de uma sabedoria
oriental transcrita e fundida com a ocidental. Penso que muitos "laicos"
alérgicos aos discursos religiosos ficarão surpresos em descobrir como é
séria, fecunda e original a busca espiritual, da forma como aflora
dessa "história" biográfica. Certamente, os teólogos e os filósofos
encontrarão coisas a serem objetadas, assim como eu também me embaracei
naquela noite e em outras ocasiões diante do fluxo de um pensamento
tanto epifânico e "sem fronteiras" ou "ilimitado". Mas a sua
interculturalidade e inter-religiosidade continuam sendo um terreno onde
agora nos reencontramos necessariamente, mesmo que com os pés plantados
nos respectivos territórios
nativos. Passemos agora ao outro personagem que nos obriga a
uma longa navegação para trás no rio da história. O seu nome era
Johannes Eckhart, mas para todos permaneceu sempre como o Mestre
Eckhart. Ele também foi um homem das fronteiras, ou melhor, afeto pelo
gosto de fixar o olhar nos abismos mais vertiginosos. O tradutor
dos seus escritos em alemão antigo e latim na Itália é um estudioso que
também gosta dos "para-doxos", ou seja, das teses "borderline" (basta
ler o final da introdução do texto que estamos apresentando), Marco
Vannini. A ele devemos a versão do Livro das Parábolas do Gênesis, que
ofereceu alguns (mas não os únicos) materiais aos censores eclesiásticos
de Eckhart, a partir do arcebispo de Colônia. É curioso notar
que, no fim, ele foi condenado por algumas das suas proposições
"para-doxais" e até "hetero-doxas" à revelia, uma revelia particular,
porque ele havia migrado
para a pátria eterna pelo menos há um par de anos. O interesse
dessas páginas, que se assomam sobre o texto bíblico do Gênesis para
arrancar dele a sua "casca literal" de forma que brilhe "o sentido mais
recôndito", é de índole hermenêutica. A inteligência é a chave que abre
as Escrituras. A razão é o instrumento indispensável para atravessar a
cortiça e fazer resplandecer a verdade de Deus escondida nas Escrituras.
As "parábolas" da Bíblia, portanto, devem ser evisceradas com o
conhecimento filosófico (sobretudo tomista), para que revelem o seu
fruto de luz. E aqui o organizador toma posse para coenvolver o
antigo mestre medieval na tese a ele cara do primado da elaboração
filosófica clássica com relação ao texto sacro basilar. •Raffaele Luise, Raimon Panikkar. Profeta del dopodomani, San Paolo, Cinisello Balsamo (Milão), 314 páginas •Meister Eckhart, Il libro delle parabole
della Genesi, Morcelliana, Bréscia, 256 páginas.
Jornal Il Sole 24 Ore, 24-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Gianfranco Ravasi